Senti-me num sítio estranho, cheio de cores indivisíveis com cheiros extremamente agradáveis, um silêncio incomodativo, mas compensado pela sensação que sentia. Não sabia onde estava, mas o medo desapareceu e a astúcia tomou contornos de bravura. Não sentia o peso do meu corpo, porque ele não andava mas deslizava, na direcção das vozes imperceptíveis e distantes que se ouviam, como cânticos eruditos e medievais. - As harpas são o instrumento musical dos deuses - Como se elas controlassem toda a minha vontade dentro do meu cérebro, resistir-lhes seria infrutífero. Apenas planava o corpo de encontro àquelas vozes misturadas com o som da música das harpas. Elas ecoam dentro da minha cabeça e começam a ser audíveis com tremenda precisão: Invadiste uma área restrita e intransponível, agora só te resta o vazio e o sofrimento, as trevas e o caos... A única ambição neste espaço que tiveste a arrogância de transpores é o respirares para sobreviveres. Aquela porta enorme, que tu vês, é a entrada para a morte; a outra mais além é a porta do paraíso, mas só lá entra quem apenas leve paz e amor no coração. Aqui, é o sofrimento eterno da tua inconsciência, senão encontrares a paz, manter-te-ás aqui para todo o sempre. Nada é real, onde te encontras neste momento, é o sonho do pesadelo a que sempre fugiste mas estiveste sempre no centro dele.
O homem é apenas, foi e sempre será, fruto das experiências falhadas dos deuses que comandam este imenso universo... Foi-lhes dado um paraíso e fizeram dele um amontoado de lixo, esgotando a sua capacidade com a mentira, com a subversão, ganância e guerras infrutíferas que só desenvolveram ódios entre os homens. Nada mais lhes restará senão o sofrimento e as trevas da incoerência. Tiveram dois mil anos, para mostrarem as vossas capacidades e desenvolverem a riqueza da terra sem a destruírem, esse tempo está a esgotar-se, só nos resta a nós, pensarmos na solução que iremos fazer com todos vós... Até lá, serão talvez os mártires da vossa subserviência. Nada do que tu vês ou sentes é real, és apenas o reflexo de um sonho do teu criador que se tornou num pesadelo. Tu não existes. Tu és apenas uma aragem e simples pó que jamais assentará!
Depois de ouvir esta mensagem vinda daquelas vozes, sinto o corpo cada vez mais leve, via partículas dele a espalharem-se pelo espaço que sobrevoava, à medida que se descolavam do meu corpo, ia-me sentindo cada vez mais lúcido, até que percebi que todas aquelas partículas que saiam, eram unicamente todos os meus pecados. Quantos mais pecados nós tivéssemos mais elas sairiam fazendo-nos desaparecer totalmente. As minhas tinham cessado, e eu continuava lúcido. Afinal, não era o grande pecador que eu julgara que era, senão já não existia e não me encontrava agora aqui...
Sentado no areal, nesta praia imensa e deserta, à beira mar observo a linha do horizonte, de bloco notas e lápis na mão, apetece-me escrever o que sinto, mas nada me vem à ideia a não ser esta enorme tranquilidade que se respira entre ventos e maresias não se ouvindo nada mais a não ser os guinchos das gaivotas a esvoaçar nos céus dos mistérios que ocultam a sua beleza.
Cheguei aqui sem destino, apenas quero pensar, pensar nesta tranquilidade que respiro, envolto em mistérios por desvendar, no meio desta calma que assolam ideias, e nos entregam à imaginação. Ouço os ventos assobiar, como se estivessem a falar comigo, e as ondas do mar a galgar a areia da praia, penso no que sou e nos vários eus dentro de mim, converso com todos eles, aconselho-me nas minhas lisuras de incompreensão e peço ajuda aos anjos, que me controlem esta minha insatisfação de não poder estar sempre ali, a ver ao longe a linha do horizonte, mas eles não me ouvem, com o barulho das ondas do mar e do guinchar das gaivotas.
Vejo ao longe um vulto negro, a esvoaçar acima da linha de água - e juro que não bebi nem fumei nada - cada vez se aproximando mais aquela imagem, senti por momentos a respiração descompassadamente intranquila e ofegante, pela sensação que me beijava os sentidos, pensando que me viria buscar, para sítios de outras galáxias onde a luz faz muito mais sentido do que as trevas. Políticas do universo, onde não há lugar a incongruências, consciências puras, desprovidas de vaidade e outros sentimentos tais, que não interessam nada, a não ser, confundir aquilo para que fomos destinados. Oh vulto negro, me envolve e abraça, me beija, para poder absorver toda a tua misteriosa sabedoria, terás certamente, também, de abraçar todos aqueles, que não entendem o prazer da satisfação neste mundo inculto, de saberes ilusórios que nos mudam e transformam naquilo que agora somos e nos tornámos, mas que nunca nos alimentaram o corpo, somente a alma.
Acordei naturalmente, sem um mínimo de esforço, a paz e a serenidade tinham invadido o lugar do meu corpo. Tudo acontece segundo a nossa aspiração e toda a nossa vontade... Aquele lugar tão longínquo como são e foram todos os sonhos, mesmo que esse lá longe seja apenas a eternidade do pó das estrelas de que somos feitos. Por estes sonhos que acalento, e tu, aí, talvez, olharei o horizonte em cada dia que nasce, e beijarei cada amanhecer. E por tudo isto amanhã olharei por um segundo mais a linha invisível que me separa do sonho, e desejarei que o Discovery pouse na Terra sob as asas dos anjos que ainda restam, suplicantes, em nós. Não haverá lágrimas no céu!
"O sábio não emprega palavras fúteis, nem se deixa levar pelo desejo; a dor e a alegria não o alteram". O puzzle só fará sentido com as peças todas encaixadas nos sítios certos, com elas dispersas, apenas nos sobra a confusão das imagens que ele contém sem nunca chegarmos sequer a vê-las!... A nossa vida, faz-se quase com as mesmas regras e pelos mesmos princípios. Se pegarmos num livro e apenas lermos o título, nunca saberemos a história que ele contém no seu interior. Teremos de saber desfolhar as folhas da nossa vida para percebermos o papel preponderante que nela temos ... Assim, a única diferença que há entre a realidade e a ficção, é que a realidade consome-se com a própria vida e a ficção é apenas alimentada pela ilusão da nossa imaginação...